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Crítica | Segunda temporada de “Legion” não repete o brilho da primeira, mas reafirma o caráter único da série

Obs.: esta crítica contém spoilers leves da segunda temporada e alguns essenciais da primeira.
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Obs.: esta crítica contém spoilers leves da segunda temporada e alguns essenciais da primeira.

Bastou apenas o episódio de estreia para Legion se firmar como um produto audiovisual extremamente distinto do restante de séries sobre super-heróis. Oriunda da mente do genial Noah Hawley, criador da aclamada Fargo, a série se beneficiou da desnecessidade de se vincular à já confusa linha do tempo dos filmes do X-Men para se portar como um produto ousado, psicodélico e acima de tudo autêntico – um primor de produção que fazia jus às complexidades de seu protagonista, David Haller, encarnado com intensidade e quase perfeição por Dan Stevens.

Claro, a história era o de menos – basicamente tínhamos David descobrindo que a suposta esquizofrenia que o atormentou por anos era na verdade a presença maligna do mutante Rei das Sombras em sua mente desde que era bebê, e contando com o apoio de sua namorada Sydney Barrett (Rachel Keller, que colaborou com Hawley em Fargo) e de outros mutantes pertencentes à organização chamada Summerland e liderados por Melanie Bird (Jean Smart, também presente em Fargo) enquanto precisavam fugir da misteriosa Divisão 3. Mas isso importava diante de tanta exuberância visual que saltava aos nossos olhos semana por semana? Não importava, mas aí entra outra pergunta: pode um raio cair duas vezes no mesmo lugar? A segunda temporada de Legion, encerrada nesta semana, mostra que sim, mas com menos intensidade. A sensação que fica ao final dos seus onze episódios (que inicialmente seriam dez, mas um extra foi surpreendentemente adicionado no decorrer da temporada) é satisfatória, mas não sem algum gosto amargo.

A trama aqui se passa um ano após os eventos da primeira: David está desaparecido, Syd e os outros membros de Summerland agora trabalham ao lado dos seus ex-nêmesis da Divisão 3, e O Rei das Sombras (mais comumente nomeado por Amahl Fahrouk e brilhantemente interpretado por Navid Negahban) busca por seu corpo original enquanto manipula tanto Oliver (Jemaime Clement), o marido de Melanie que passou anos em uma espécie de “coma”, quanto Lenny (Aubrey Plaza, maravilhosa), a outrora amiga de David que se tornou a representação do Rei das Sombras na primeira temporada. De volta ao “mundo real”, David precisa ajudar seus amigos a enfrentar Fahrouk e impedi-lo de recuperar seu corpo, mas novas facetas da sua personalidade vão sendo desvendadas e vemos que nada é o que parece.

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Novamente, temos uma trama que em si não parece render 11 episódios, de forma que Hawley e seus roteiristas sustentam a primeira metade da temporada em um nítido desenvolvimento de personagens, especialmente David e Syd. A relação dos dois vai assumindo novas nuances, especialmente pela presença de uma “Syd do futuro” que alerta David sobre a necessidade de ajudar Fahrouk em encontrar seu corpo, não em destruí-lo; de forma que seu relacionamento com Syd e os amigos vai sendo tomado de desconfiança e segredos e portanto gradativamente sendo corroído.

Por outro lado, vemos alguns coadjuvantes ganhando mais espaço – em especial os “gêmeos” Cary (Bill Irwin) e Kerry (Amber Midthunder), cuja relação é sempre um excelente escape cômico para a série, Clark Debussy (Hamish Linklater), uma figura central da Divisão 3, e Lenny, que ganha um novo papel dentro do escopo da série que permite que vejamos mais da atuação magnética de Aubrey Plaza. Entretanto, outros como Ptonomy (Jeremie Harris) e Oliver são bastante subutilizados; o primeiro inclusive sequer tem uma conclusão para seu arco. Pior ainda é o que é feito com Melanie, criminosamente ignorada pela maior parte da temporada para receber uma atenção apenas no antepenúltimo e penúltimo episódios, sendo que o antepenúltimo é facilmente o pior episódio da série justamente por focar metade do seu tempo para nos fazer compreender o que já sabíamos, revelando um didatismo que não casa com a proposta mais visual da série.

Por outro lado, os novos personagens são excelentes adições. Somente em Legion você pode assistir um comandante japonês com um cesto na cabeça que é acompanhado de mulheres robóticas com bigodes a la Freddie Mercury. Mas o grande destaque acaba sendo de fato Negahban, que incorpora uma persona elegante e carismática ao seu Fahrouk, complementado pelo seu sotaque e pelas falas que alternam entre o inglês e o farsi. Distanciando da figura demoníaca em que o Rei das Sombras era representado na primeira temporada (e da qual tenho medo até hoje), ele nos faz questionar realmente o maniqueísmo que possa haver entre David e Fahrouk, mesmo que para isso a série precise recorrer a mais alguns didatismos.

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Mas acima de tudo essa é uma série sobre David, e elogiar a atuação de Dan Stevens é chover no molhado. Duvida de mim? Apenas assista o sexto episódio, onde temos uma vitrine desta atuação, encarando Davids de várias realidades alternativas que se sobrepõem conforme é tratado o seu luto perante a perda de alguém importante. É uma prova de como a série acerta ao explorar as psiques dos seus personagens, especialmente do seu protagonista.

Infelizmente, quando ela decide apostar no “macro”, para assim movimentar a trama, ficam claras as suas deficiências. Os episódios 7, 8 e 9 se constituem o ponto mais baixo da série até aqui, com o estilo e o primor visual não conseguindo mascarar uma visível falta de coerência na trama. A sensação é que Hawley perdeu a mão, cometendo o erro básico das sequências – mais e mais e mais. Fica evidente que estender a temporada para 11 episódios comprometeu e muito seu ritmo; 10 já seriam suficientes para colocar a temporada no patamar da sua antecessor. Não à toa o desapontamento é inevitável…

… Mas eis que vêm os dois últimos episódios e nos relembram todos os motivos pelos quais amamos a série. Se o 10 retoma aquele tom da primeira temporada, o season finale amarra as pontas e nos entrega uma reviravolta chocante, que nos faz mudar toda a nossa percepção da história e em especial do próprio David – que realiza atitudes aqui tão indefensáveis que nem mesmo a semente da dúvida sobre até que ponto suas ações são fruto dos resquícios de influência do Rei das Sombras ou evidências do seu próprio caráter pode apagar o que fez. Até mesmo os vários monólogos narrados por Jon Hamn no decorrer da temporada sobre delírios, ideias e outros assuntos psicanalíticos ganham seu sentido completo, quando nos damos conta de que o verdadeiro “delírio” da série tem sido construído desde o primeiro episódio. Talvez as grandes revelações sobre David surjam um tanto apressadas, o que só evidencia o ritmo problemático da segunda metade da temporada, mas ainda assim nos deixam com um grande gosto de quero mais, e nesse sentido saber que a série foi renovada a despeito dos seus riscos de cancelamento me traz um grande alívio.

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No que tange aos quesitos técnicos, Legion segue irrepreensível. O design de produção da série é um primor em nos lançar num mundo anacrônico, que conta tanto com elementos retrôs quanto futuristas. A fotografia é também um deleite, ao passo que as alternâncias entre as razões de aspecto são um dos grandes destaques da série. E a trilha sonora de Jeff Russo mantém os tons abstratos e psicodélicos da primeira temporada, enquanto a trilha sonora licenciada, ainda que não se destaque tanto quanto no primeiro ano, sempre rouba a cena quando aparece. Legion é uma série única em muitos aspectos – e desde o “confronto de dança” entre David e os lacaios de Fahrouk numa boate no primeiro episódio, passando por um rato cantando Slave to Love de Brian Ferry no sexto episódio e o embate de David e Fahrouk cantando Behind Blue Eyes enquanto suas projeções mentais se digladiam no último só são uma amostra do quão inventiva e criativa essa série pode ser.

É uma pena, portanto, que em vários momentos dessa temporada ela pareça se perder em sua própria arrogância, e não consiga trazer de volta o brilho que o primeiro ano nos trouxe. Era inevitável que o frescor da novidade passasse, mas considerando como Hawley alterou as regras do jogo na segunda temporada de Fargo e a tornou ainda melhor que a primeira, era de se esperar que o mesmo fosse feito aqui. Ainda assim, mesmo com defeitos evidentes, não são eles que tiram de Legion o título de melhor série de super-heróis da atualidade. Se bem que, com tantos elementos de horror psicológico, suspense, ficção científica, comédia e drama (e com um protagonista que nunca foi um bom mocinho), é difícil dizer que ela pertença a este ou qualquer outro gênero.