Em 2017, Kevin Spacey, o co-protagonista de House of Cards, uma das produções mais importantes da dramaturgia atual, foi acusado de assédio e conduta sexual imprópria por mais de 13 homens em um período de 30 dias. Destas acusações, 8 saíram de dentro da própria produção da série, o que tornou a participação do ator na 6ª e última temporada da série inviável.
O final da temporada 5, de certa forma, facilitou o trabalho dos redatores para retirar fisicamente o personagem de Spacey (Frank Underwood) da história e tornar Claire Underwood (Robin Wright) a única protagonista. A renúncia do presidente, o afastamento da Casa Branca, o fígado debilitado e a ascensão natural de Claire já estavam no roteiro, escrito antes do escândalo da vida real.
Se não fossem as polêmicas envolvendo Spacey, a última temporada de House of Cards seria sobre o confronto épico de Underwood vs. Underwood. Agora, com o roteiro readaptado, Francis está morto, mas não está ausente. Claire, a atual presidente, estranha a conveniente morte do marido e tem que lidar sozinha com empresários poderosos que tentam controlá-la e fantasmas do passado que estão reaparecendo.
Nos seus primeiros 100 dias de governo, Claire está recebendo 4x mais ameaças de morte do que Francis recebia e Usher (Campbell Scott), agora seu vice-presidente, recomenda que ela não faça aparições públicas. “A primeira mulher presidente dos EUA não ficará calada em seu primeiro 4 de julho”, diz a mulher mais importante do mundo livre. E este clima de tensão permanece pelos primeiros 5 episódios. Claire não tem um único momento de sossego e desconfia de todos que estão ao seu redor.
Assim como o último presidente Underwood, Claire passa boa parte do tempo tentando resolver os problemas que foram varridos para baixo do tapete nas temporadas anteriores. E agora descobrimos a quem Francis se referia quando mencionou “o poder atrás do poder”, as forças que estavam do lado de fora da Casa Branca: Bill (Greg Kinnear), Annette (Diane Lane) e seu filho Duncan Shepherd (Cody Fern), uma família de poderosos industriais de influência quase ilimitada que manipulam o vice-presidente Mark Usher e querem que a presidente siga as suas instruções. Eles são o grande obstáculo da presidência nesta temporada.
Bons personagens como o presidente russo Petrov (Lars Mikkelsen) e a consultora para “assuntos aleatórios extra campo” Jane Davis (Patricia Clarkson) estão de volta, trazendo alguns momentos de estranha leveza e ironia para a última temporada. O núcleo jornalístico liderado por Tom Hammerschmidt (Boris McGiver) recebe mais uma vez o reforço de Janine Skorsky (Constance Zimmer), que investiga um aplicativo para celular muito suspeito, criado pelas organizações Shepherd.
Os criadores Melissa Gibson e Frank Pugliese nesta sexta temporada de House of Cards mostraram que não ter excluído o personagem de Frank Underwood da história foi a decisão mais correta para manter a conexão com as temporadas anteriores. Apesar do marido não aparecer fisicamente, Claire tem que lidar com as consequências das ações e pactos feitos por Francis. A saída de Spacey é sentida em alguns momentos, mas não empobreceu o enredo. Pelo contrário, deu aos redatores a chance de gerar novamente curiosidade pela série, já que a grande dúvida desde o escândalo era “como eles vão fazer isso sem ele?”.
O maior destaque desta temporada é o amadurecimento dos personagens principais. Claire, que durante 5 temporadas flertou com o pragmatismo implacável mostra que, finalmente, encontrou o seu estômago de aço e fará de tudo para que ninguém interfira mais em seus planos. Doug Stamper (Michael Kelly), que sempre lutou contra seus vícios para tentar manter-se lúcido, demonstra que o maior vício da sua vida desequilibrada tem um nome: Frank Underwood. Enquanto Claire tenta livrar-se da imagem do marido, Doug faz de tudo para manter o seu legado.
Mas a temporada não tem apenas pontos positivos. A redução de 13 para 8 episódios fez com que algumas histórias fossem resolvidas de forma apressada. Espectadores menos atentos podem perder algumas explicações que são dadas em cenas aparentemente menos importantes. Como nas temporadas anteriores, o roteiro dá dicas sutis do que está acontecendo, mas fica claro que, ao menos 2 episódios a mais seriam necessários para que alguns arcos fossem fechados de forma mais satisfatória.
A quantidade de vezes que Frank Underwood é mencionado também chama a atenção, fazendo com que o espectador fique esperando, pelo menos, ouvir a sua voz ou que ele apareça em flahsbacks. Mas, infelizmente, isso não acontece. Um personagem tão carismático e importante como Frank nos deixa com saudades das quebras da quarta parede e seu característico sotaque de Gaffney.
Devido aos fatores externos que quase causaram o cancelamento da série na 5ª temporada, a ousadia de Robin Wright em liderar um projeto sem o seu maior parceiro deve ser admirada. Wright leva sua personagem, Claire, ao ápice da loucura pelo poder. A atriz, declaradamente feminista, também foi de um profissionalismo irretocável ao decidir jamais falar mal de Spacey e seus problemas, apesar de ter sido cobrada pelo público e pela imprensa a dar declarações e mostrar um posicionamento. Foram meses de cobranças, quase ao estilo da militância #EleNão, que exigiu as opiniões de alguns artistas durante as eleições no Brasil. Mas Robin optou pelo silêncio.
Quando a divulgação da última temporada de House of Cards começou e as entrevistas ficaram inevitáveis, Wright limitou-se apenas a falar que seu relacionamento com Spacey acontecia exclusivamente no set de gravações e comentar que não é possível esquecer “o incrível artista que ele é”. Intimamente, talvez a atriz condene as atitudes do colega de elenco, mas, publicamente, não quis tornar as acusações o centro da conversa. Algo que, provavelmente, Claire Hale Underwood também teria feito. O legado dos Underwoods ultrapassou a quarta parede e chegou ao mundo real.
A temporada 6 de House of Cards está disponível na Netflix desde o dia 2 de novembro.
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